segunda-feira, 23 de abril de 2007

Dos brinquedos de lá, dos demônios daqui

Ela tinha bonecas e bichinhos feiosos em seu quarto...

Numa pensão, em mais uma cidade barulhenta, violenta e com pressa.
Não sei se por coincidência, mas quando desci as malas do táxi, ela estava à porta, e falou empolgada sobre termos em comum a mesma cidade de origem.
Eu estava com pressa, então tratei logo de ir subindo todo "o peso do conhecimento", é como dei a chamar meus livros, velhos e bons companheiros, que juntos a mais duas bolsas de roupas é todo meu legado nesta cidade estranha e nova ainda.
Numa dessas subidas e descidas, a porta do seu quarto estava aberta, e pude ver os tais mostrengos, que chamo assim por imbecil vaidade, numa colcha cor-de-rosa que combinava com um cortinado também cor-de-rosa, colocado para disfarçar a parede de fórmica que todos os quartos daquele corredor têm.

"Puxa, uma moça, na verdade, uma mulher com tanta coisa infantil... Ai, nem eu quando fã da Xuxa tive tanto rosa..." pensei com meus botões, na verdade, eu carregava meus dois bichos de pelúcia nessa hora, um peixe Dóri e um galo preto estranhamente adorável, o Francisco.
Eles estavam numa sacola, e assim evitaria comentários. Mas pensei que eu em toda a vida jamais dera qualquer atenção a bichinhos ou bonecas, como toda menina faz. Ironicamente, depois de adultecer tinha ganho esses dois fofinhos, e desde então eles sempre me acompanhavam.

"-Ah... Estou passando minhas calcinhas!" disse aquela voz de dentro do quarto.

Eu dei aquela levantada de sobrancelhas seguida da espremida de lábios que sempre dou quando penso "Já que a pessoa perdeu a chance de me poupar dessa pérola, eu não perderei a minha!", e ai soltei a única coisa que consigo pronunciar nessas horas: "é..."
Na verdade, dentro de mim sempre aflora algo: "Será que ela conta também quantas vezes escova o cabelo?" Mas que prefiro guardar pra mim.

Fiquei pensando nessa situação inicial alguns dias.

O que faz uma pessoa adulta transformar seu quarto, numa pensão, em um recanto infantil? Carência? Saudades de casa? Infância não vivida?
Bem... Meu talento para psicóloga é restrito, e graças a Deus sei disso. Portanto resumi a um simples "Bom, o problema não é meu, e desde quando me cabe pensar nisso?!" e deixei de lado.
Passamos alguns dias sem nos falar.
Aliás, falar é um talento meu que não aflora assim facilmente se na presença de novos convivas. Levo muitos dias pra pôr em prática este verbo. (Pelo menos uma vez na vida, né?!)

Outro dia eu soube que a moça dos ursinhos mora há muitos anos nesta cidade em que trabalha comercializando o seu corpo nas noites frias.
Embora o meu quarto seja o da frente do prédio, e da janela eu possa ver quem chega e sai, realmente não tinha percebido nada demais, pelo menos, nada que me interessasse. Mas não foi difícil sentir a ausência de qualquer coisa no dia em que ela perguntara se eu conhecia fulano ou ciclano: políticos, fazendeiros, ricões e donos dos carrões que porventura a levam em casa.
"Não os conheço."(Realmente, meu círculo social sempre foi mais alternativo mesmo, me dei conta.)
Vi qualquer desapontamento em seu olhar ao saber de minha ignorância social.
Eu que incialmente, sentira qualquer orgulho em ostentar que essas informações que a orgulhavam tanto, não me faziam considerar uma pessoa, felizmente dei por mim logo.
Ah o orgulho essa companhia tão presente e constante. Quantas peças têm me pregado ao longo da vida.
E eu que gosto tanto de Bukowski e do marginal. Que teria sido beatnik ou junkie em meus devaneios... Jamais seria na prática. A literatura é uma companhia enganadora. Ou como diz Graciliano em um livro que leio, enquanto os outros andam, eu como papel, besta, besta!


Ouvindo Tori Amos: Walk to Dublin.

Um comentário:

Diogo Lyra disse...

Livros: ruim com eles, pior sem eles!!!!!